terça-feira, 29 de dezembro de 2015

CONTOS DE FOGUEIRA - A Lua Negra da Alma


Quando fiz vinte anos, decidi voltar para a pequena cidade rural de meu nascimento. Mas, ao invés de ir morar na casa de meus pais, decidi viver com Baba Yaga – a bruxa local. Sua casa era uma típica casa de senhores do interior, um grande latifúndio afastado da cidade, com grandes portas e janelas e um imenso jardim coberto de árvores sagradas que guardavam tudo. Ela abriu a porta da frente pra mim quando cheguei, e eu, de bom grado, entrei. O que tinha a temer? Já fizera tudo certo antes: conversei com ela por muito tempo, fiz inúmeras visitas em sua propriedade, pude conhecer alguns de seus amigos. Tudo isso antes dela me aceitar como seu aprediz.

Assim que entrei na casa, fiquei encantado pela decoração de seu interior. Plantas penduradas no teto cobriam quase todas as superficies. Duas vassouras cruzadas e colheres de ferro entalhadas com alguns símbolos obscuros pra mim pairavam sobre as portas dianteiras e traseiras. Haviam prateleiras nas paredes, cobertas de frascos com óleos, tinturas e ervas. Belas estátuas de deuses e deusas, altares, paus, ossos e pedras completavam o ambiente juntamente com algumas velas que queimavam preguiçosamente.

A bruxa me deu uma esteira de palha para dormir no chão da sala de jantar. Deitado lá, à noite, começei a ver através deste glamour folheado a ouro de contos de fadas e toda aquela fantasia começou a ruir em folhas secas. Ervas daninhas começaram a brotar das frestas nas paredes e o mofo no teto contaminava toda a casa com esporos doentios.


Por três meses varri, limpei, esfreguei e cozinhei pra ela. Pus o lixo pra fora e reguei todas as plantas. Eu era um servo de Baba Yaga. Em troca de todo este serviço e dedicação ela me disse que iria me ensinar as artes das bruxas. Ela me disse, certa vez, que era curandeira, herbalista, vidente e bruxa. Suas palavras e promessas me encantaram, como doce na boca de uma criança. Mas pouco me foi dito ou ensinado nesses meses de servidão.

Conheci alguns de seus aprendizes durante este tempo. Eles eram cascas secas de seres humanos, corpos sem alma – ranzinzas, rancorosos, doentes. Fiquei preocupado e alarmado, pois ela não via nada de errado nisso. Foi ai que o glamour que Baba Yaga havia lançado sobre si mesma começou a rachar aos meus olhos. 


Como fazia muitos anos que não visitava a casa de meus finados pais, provavelmente ninguém na região me reconheceria - eu era um total estranho. E, devido as escaças memórias de criança vividas ali, eu não conheceria muito bem a região. A bruxa não quis me ajudar, de forma alguma; não me falou sequer o horário do ônibus ou como chegar na vila propriamente dita.



Seu desejo era ter-me integralmente dependente dela, assim eu acreditaria em cada uma de suas palavras. Disse até que se eu a deixasse um grande mal aconteceria a mim.


Começei a perceber o quão doente ela era, tanto fisicamente e espiritualmente. Creio que ela deveria estar morta devido a tantas doenças. Como uma pessoa poderia curar os outros quando esta não pode curar a si mesma? Mas ela podia sim curar a si mesma – alimentando-se da alma dos outros para se manter viva. 

Baba Yaga me encantava, falando-me do meu poder e potencial e de como eu poderia ser aproveitado, mas ela nunca quis me ensinar nada. No fim, sei, ela só queria me engordar para enfiar-me em seu forno e me comer depois – banquetear-se com minha alma, assim como ela já tinha feito com os outros antes de mim.

 
Entretanto, ela não contava com minha astúcia e coração puro. Eu escutei a minha intuição, a pequena voz da verdade, e enganei a bruxa. Escapei de suas garras, não incólume, mas com a minha alma ainda intacta. Saí de fininho a meia-noite enquanto ela roncava alto em seu quarto.  Desencantei a fechadura, bloqueei seus alarmes e corri, corri noite adentro, desesperado, seguindo as estrelas e minha voz interior. Chegando na cidade, segui a ermo e reconheci minha antiga e nova casa. Entrei e queimei tudo o que ela tinha tocado. Istintivamente aprendi como fazer escudos e barreiras para me proteger e como me ocultar para que ela não me encontrasse através de meios mágicos.
 
Não foi a toa o que Baba Yaga me ensinou. Ela tinha muitas lições a me dar, mas na época eu não as valorizei. Olhando no espelho, posso vê-la me encarando, um reflexo da minha alma. O que eu poderia me tornar se fizesse as mesmas escolhas que ela fez. Eu era inocente, ingênuo, e confiante antes de caminhar através de sua porta, mas quando saí ,estava desconfiado, vigilante e consciente dos males que poderiam habitar o mundo, bem como a alma do ser humano; as mentiras, amargura, ressentimento, raiva e todo o medo.
 
O medo de confiar, medo de amar, e também o medo de morrer. Se eu deixar o medo dominar minha vida, eu me tornarei ela e, portanto, meu maior inimigo.
 
Ela não era puramente malvada. Contudo, tinha sofrido muitas maldades na vida – grandes maldades. Ela não me disse isso diretamente, mas deixou escapar e pude sentir e ler as manchas em sua alma, claras como o dia. Aqueles que ela amou e confiou magoaram-na profundamente. E, ao invés de deixar passar todo o mal, esvair-se e encontrar o perdão para si mesma e para seus malfeitores, ela acabou se tornando o que mais desprezava: a abusada tornou-se abusadora.
 
Eu poderia ter sido ela...
 
Entretanto, me recusei a ser abusado e deixei pra trás seus maus caminhos. Por muito tempo desejei vê-la morta, mas agora só desejo a sua paz e felicidade, pois sei que gente feliz não enche o saco. Ademais, sua alma não encontrará descanso no submundo devido a todas maldades causadas a almas inocentes. Esteja certo: o que vai, volta.


Às vezes, quando você procura Baba Yaga para obter iluminação, ela lhe dá mais trevas, refletindo a escuridão dentro de sua própria alma. Se você aceitar a sua escuridão interior, e sei que toda sombra é apenas potencial puro, você seguirá o Caminho, e sua Jornada estará cada vez mais próxima daquilo que sempre procurou.


Morgan Lyra

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